Vivemos um tempo em que a comunicação pública passa por uma transformação sem precedentes. As redes sociais não apenas alteraram o modo como falamos: elas mudaram as regras do jogo. O que antes era filtrado por mediações institucionais — imprensa, academia, partidos, instâncias culturais — hoje circula sem freio, sem curadoria, sem contexto. Houve uma democratização real da fala, disso não há dúvida. Mas essa conquista veio acompanhada de distorções que precisam ser examinadas com cuidado: a diluição dos critérios de verdade, o colapso das mediações tradicionais e a perda de referência sobre quem pode falar em nome de quê.
Nesse ambiente, defender a liberdade de expressão não é um gesto abstrato, nem uma bandeira ideológica. É uma necessidade política concreta. A tentação de combater os excessos do ambiente digital por meio da censura ou da repressão é compreensível — mas perigosa. Ainda mais em um país como o Brasil, onde os impulsos autoritários sempre rondam as instituições e onde o punitivismo encontra terreno fértil. Em meio à polarização, à judicialização da política e à cultura da punição exemplar, a liberdade de expressão precisa de algo mais do que garantias constitucionais: precisa de sobriedade institucional e de uma defesa consciente.
É nesse ponto que o julgamento sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet, em curso no STF, se torna crucial. O que está em jogo ali é se as plataformas digitais podem ser responsabilizadas diretamente pelo que os usuários publicam, mesmo sem ordem judicial. Se essa tese avançar, teremos uma ruptura com a lógica que organizou até aqui o espaço digital no Brasil. Mais do que isso: estaremos terceirizando para empresas privadas a tarefa de decidir o que pode ou não ser dito. Não por decisão judicial, mas por medo de punição. É um modelo de autocensura empresarial que troca o direito pela cautela e instala um regime preventivo de silêncio.
Esse problema é ainda mais grave quando se observa o cenário institucional brasileiro. O Judiciário, especialmente o STF e o TSE, assumiu um protagonism quase absoluto no debate público. É um poder que opera cada vez mais por decisões monocráticas, por inquéritos sem delimitação clara, por interpretações elásticas da Constituição. Quando isso se normaliza, o risco não é apenas jurídico — é democrático. Um Judiciário sem contrapesos efetivos passa a agir não como árbitro, mas como ator político, escolhendo quais vozes podem ou não circular.
O curioso é que o Brasil já dispõe de um arcabouço jurídico robusto para lidar com abusos de linguagem, discurso de ódio e desinformação: Código Penal, Marco Civil, LGPD, legislação eleitoral. O que falta não é norma. Falta é aplicação criteriosa, proporcional e ancorada no devido processo legal. Criar exceções, ampliar o poder das plataformas ou reforçar o braço punitivo do Estado não resolve o problema — apenas desloca a tensão para outro lugar.
A condenação recente do humorista Léo Lins, sentenciado a mais de oito anos de prisão por piadas em um show de stand-up, é um sintoma claro desse momento. Não se trata de defender o conteúdo do que foi dito, mas de apontar o risco de criminalizar ambiguidades, ironias e provocações. Quando o desconforto vira critério de punição, o humor e a crítica se tornam alvos fáceis. E quando isso acontece, o que se instala não é justiça — é repressão simbólica.
É evidente que o ambiente digital trouxe consigo uma explosão de discursos vulgares, superficiais, desinformados. Não se trata de romantizar o caos das redes. Como disse Umberto Eco, há algo de preocupante na súbita visibilidade de vozes que antes ficavam à margem. Mas a resposta a isso não pode ser o silêncio imposto. Tem que ser a crítica pública, o debate argumentativo, a checagem rigorosa, o embate de ideias. O erro não se combate com mordaça — se combate com confronto intelectual.
Sociedades maduras não eliminam o conflito. Aprendem a conviver com ele. Administram o dissenso. Sabem que, sem liberdade para errar, não há liberdade nenhuma. Quando o medo de falar se instala, rompe-se mais do que o elo entre a palavra e o cidadão: rompe-se o próprio tecido do espaço público, a possibilidade de pluralidade, de confronto produtivo, de convivência democrática.
Hoje, falar continua sendo um ato de coragem. E, mais do que isso, é um ato de resistência: contra a mediocridade, contra a homogeneização do pensamento, contra a ideia de que liberdade pode ser negociada em nome da ordem. Defender a liberdade de expressão não é luxo. É dever democrático.