Por trás das disputas eleitorais em Manaus existe uma fotografia estrutural que se repete — e ela é mais importante do que a troca de nomes, alianças e slogans. Quando se observa 2020 e 2024 de forma integrada, cruzando eleitorado total, votos válidos, abstenção, brancos, nulos e dispersão de candidaturas, um padrão aparece com nitidez: nenhum projeto político conseguiu maioria social real.
Houve mudança na concentração do voto. Houve rearranjo na hierarquia das candidaturas. Mas o limite de legitimidade social permaneceu o mesmo.
O centro desta análise é a diferença entre liderar nos votos válidos e ter apoio da maioria do eleitorado apto. Parece detalhe técnico, mas é o ponto que explica o principal: Manaus, mesmo quando dá a impressão de caminhar para a polarização, na prática continua marcada por uma democracia fragmentada, onde governos se formam mais como soluções institucionais do que como consensos sociais.
2020: pulverização máxima e liderança frágil
Em 2020, Manaus tinha 1.331.613 eleitores aptos. O primeiro turno foi o auge da hiperfragmentação: dez candidaturas com peso político e, o que é mais revelador, cinco candidatos acima de dois dígitos nos votos válidos.
Nos votos válidos do primeiro turno, Amazonino Mendes liderou com 24,31%, seguido por David Almeida com 22,74%. Zé Ricardo teve 14,52%, Ricardo Nicolau ficou com 12,29% e Coronel Menezes alcançou 11,51%. Capitão Alberto Neto obteve 7,95%, Alfredo Nascimento 3,29% e Romero Reis 3,02%. Marcelo Amil marcou 0,29% e Gilberto Vasconcelos 0,08%.
Até aqui, a fotografia parece comum: há um líder, um segundo colocado e um bloco de perseguição. Mas essa leitura é superficial. O que importa mesmo é o “tamanho social” da liderança quando se considera o eleitorado total.
No eleitorado apto, Amazonino representou 17,6% e David 16,4%. Zé Ricardo ficou em 10,5%, Nicolau em 8,9% e Menezes em 8,3%. Alberto Neto chegou a 5,8%, Alfredo a 2,4% e Romero a 2,2%. Marcelo Amil ficou perto de 0,2% e Gilberto Vasconcelos, cerca de 0,06%.
Aí está o choque de realidade: o candidato mais votado no primeiro turno foi escolhido por menos de um quinto do eleitorado apto. Liderar nos votos válidos não significou liderança social. E o dado que define 2020 é ainda mais expressivo: Amazonino e David, os dois finalistas, somaram apenas 34% do eleitorado total. Isso quer dizer que 66% do eleitorado ficou fora do campo dos dois finalistas.
Manaus, naquele ano, não produziu um segundo turno como expressão majoritária; produziu um segundo turno como negociação final entre duas minorias eleitorais. Isso é típico de sistemas fragmentados e diz muito mais sobre a estrutura política da cidade do que sobre a conjuntura daquele momento.
2024: maior concentração, mas a maioria segue ausente
Em 2024, o eleitorado subiu para 1.446.122 eleitores aptos. O quadro foi mais concentrado, com menos candidaturas realmente competitivas e um núcleo eleitoral mais claro. Ainda assim, o padrão estrutural permaneceu.
No primeiro turno, David Almeida liderou com 32,16% dos votos válidos. Capitão Alberto Neto ficou com 24,94%. Amom Mandel fez 19,10% e Roberto Cidade alcançou 17,01%. Marcelo Ramos obteve 6,03%, Wilker Barreto 0,66% e Gilberto Vasconcelos 0,10%.
O salto de David é evidente em comparação com 2020. A disputa afunila e quatro candidaturas dominam a cena. Mas o dado decisivo está novamente na tradução do resultado para o eleitorado total.
No eleitorado apto, David representou 24,5%. Alberto Neto, 19,0%. Amom, 14,6%. Roberto Cidade, 13,0%. Marcelo Ramos ficou em 4,6%. Wilker, 0,5%. Gilberto Vasconcelos, cerca de 0,07%.
Mesmo com 32,16% dos votos válidos, o líder do primeiro turno permaneceu abaixo de um quarto do eleitorado total. Em 2024, além disso, 349.330 eleitores se abstiveram, votaram branco ou anularam. O contingente é próximo da própria votação do primeiro colocado. Não é ruído estatístico. É força eleitoral comparável ao líder.
O que mudou e o que não mudou entre 2020 e 2024
Nos votos válidos, o líder cresceu: 24,31% em 2020 para 32,16% em 2024, um avanço de 7,85 pontos. No eleitorado total, o crescimento também aparece: 17,6% para 24,5%, avanço de 6,9 pontos — um salto que não pode ser lido apenas como desempenho individual, pois foi impulsionado também pelo apoio político e pela articulação dos senadores Eduardo Braga (MDB) e Omar Aziz (PSD), que ajudaram a ampliar o campo eleitoral do vencedor em 2024.
Houve, portanto, redução da fragmentação. Em 2020, cinco candidaturas superaram 10% dos votos válidos. Em 2024, a competição se organizou num núcleo mais concentrado. Mas a superação não ocorreu. A legitimidade social continuou minoritária. Manaus saiu do caos hiperfragmentado para uma competição mais ordenada, mas não saiu do padrão de governos eleitos por parcela limitada do
eleitorado.
Abstenção, brancos e nulos: o ator invisível
O componente mais negligenciado do debate eleitoral é justamente o mais estruturante: o eleitor que não escolhe ninguém. Em 2024, esse bloco foi de 24,1% do eleitorado, segundo os registros utilizados aqui. Em 2020, permaneceu em patamar elevado.
Esse contingente diminui a representatividade do vencedor, reduz a possibilidade de maioria social e amplia a fragilidade simbólica do poder. Governa-se com base legal, mas com percepção social de base curta. Em síntese, o não voto é o principal limitador estrutural da hegemonia eleitoral em Manaus. Não se organiza como partido, mas funciona como barreira permanente à consolidação de projetos majoritários.
O dado de 2025: quando a trajetória eleitoral encontra a curva das pesquisas
A análise ganha precisão quando o retrospecto municipal conversa com os dados prospectivos de 2025, referentes às pesquisas para governador do Amazonas em 2026, no cenário com David Almeida.
O quadro comparativo de pesquisas realizadas em 2025 registra, entre março e novembro, resultados que variam de 24% a 28% para David, alternando com Maria do Carmo e Omar Aziz em posições de disputa. Há também uma massa persistente de brancos e nulos e de indecisos, que em algumas medições se aproxima ou ultrapassa 20% somados.
Em dezembro, as pesquisas registradas indicam maior compressão do patamar de David, com números de 19% a 26,5%, variando conforme instituto, amostra e data. A média das cinco últimas pesquisas do ano fecha com Omar Aziz em 38,6%, David Almeida em 22,7% e Maria do Carmo em 22,5%, com 10,1% de brancos e nulos e 6,1% de indecisos.
O dado de 22,7% é politicamente eloquente. Ele é quase idêntico ao de David Almeida em 2020 nos votos válidos (22,74%) e bem inferior ao pico municipal de 2024 (32,16%). A leitura é simples: o sucesso municipal não se transfere automaticamente para o plano estadual e o político retorna ao patamar típico do Amazonas, o do minoritário competitivo. Competitivo, sim; hegemônico, não.
Além disso, mesmo nas pesquisas, antes do rito eleitoral e antes do engajamento total do eleitor, o bloco “fora do voto decidido” continua relevante. Somados, brancos, nulos e indecisos alcançam 16,2% na média final das cinco últimas pesquisas. Isso significa que boa parte do eleitorado segue em zona de hesitação ou desmobilização, reforçando a fragilidade estrutural da hegemonia.
O diagnóstico: Manaus é uma cidade sem maioria eleitoral orgânica
A leitura integrada de 2020 e 2024 permite concluir que Manaus vive uma democracia com três características persistentes.
Primeiro, lideranças eleitorais são minoritárias. Mesmo o líder de 2024, com desempenho forte, não chega a 25% do eleitorado total no primeiro turno.
Segundo, a pluralidade impede hegemonia social. A competição mantém vários polos relevantes, bloqueando um partido natural dominante.
Terceiro, o não voto é a maior força eleitoral potencial. Com cerca de um quarto do eleitorado fora do voto válido, Manaus tem um freio estrutural à legitimidade total.
A consequência política: governo de minoria depende de máquina, alianças e opinião
Se nenhum projeto é majoritário, o poder não se sustenta apenas pelo voto de origem. Exige coalizões permanentes, capacidade de governar para além do próprio eleitor, disputa constante de narrativa e expansão de apoio em ciclos curtos. Exige também, e sobretudo, a gestão do contingente que não vota.
Isso ajuda a explicar por que, em Manaus, a política costuma ser altamente dependente de alianças, vulnerável a mudanças rápidas de humor social, aberta a outsiders quando o sistema tradicional se enfraquece e marcada por segundos turnos que funcionam como soluções de minoria.
Segundo turno (2020 e 2024): maioria institucional, limite social
Se o primeiro turno revela a fragmentação, o segundo turno deveria produzir uma maioria clara. Em Manaus, porém, o segundo turno produz principalmente uma maioria institucional, dentro do voto válido, e não necessariamente uma maioria social no eleitorado total.
Manaus não elege maiorias; elege vencedores.
Em 2020, David Almeida venceu Amazonino Mendes com 466.970 votos (51,24% dos válidos), contra 443.747 (48,76%). No eleitorado total de 1.331.613 aptos, a vitória traduz-se em aproximadamente 35,1% do eleitorado para David e 33,3% para Amazonino. A diferença real, medida na sociedade, não chega a dois pontos percentuais. Foi um fechamento eleitoral apertado entre duas minorias grandes.
Em 2024, a vitória foi mais confortável. David Almeida obteve 576.171 votos (54,59% dos válidos), enquanto Capitão Alberto Neto registrou 479.297 (45,41%). No eleitorado apto de 1.446.122, isso representa aproximadamente 39,8% para o vencedor e 33,1% para o adversário. Mesmo assim, o vencedor não chega a 40% do eleitorado total.
E o que completa o retrato é o dado estrutural do próprio segundo turno de 2024: a abstenção foi de 338.252 eleitores (23,39%), somada a 22.161 votos brancos (2,00%) e 30.241 nulos (2,73%). O total de abstenção, brancos e nulos foi de 390.654 eleitores, cerca de 27,0% do eleitorado. Esse bloco, sozinho, é uma força política permanente: limita qualquer pretensão de hegemonia e faz com que a vitória se torne um ponto de partida, não um ponto de chegada.
Comparando os dois segundos turnos, o vencedor melhora. Sai de 51,24% para 54,59% nos válidos e cresce de 35,1% para 39,8% no eleitorado total. Mas a hegemonia não nasce. O que se consolida é a capacidade de fechamento eleitoral, não uma maioria social orgânica. Por isso, a governabilidade continua dependendo de coalizões, gestão de opinião e ampliação permanente de base.
Durango Duarte