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Ocupação urbanística de Manaus, um caso de… (Série 1960)

IDD: Ocupação urbanística de Manaus, um caso de... (Série 1960) - Durango Duarte

"A revolução foi geral quando, em 1968, durante a gestão do prefeito Paulo Pinto Nery, se pensou trocar o nome do bairro Praça 14 para Praça Portugal."

Nesta coletânea, Manaus Série 1960, você poderá conhecer os primeiros passos da ocupação urbanística da cidade. Isso inclui a aquisição de terras pelo governo de Gilberto Mestrinho, que resultou no surgimento de bairros e avenidas. Essas áreas até hoje formam a base do mapa urbano de Manaus.

 

BAIRRO DE EDUCANDOS

Havia um latifúndio no então bairro de Educandos, cujo imbróglio entre os proprietários e os sucessivos governos estaduais, já se arrastava por 30 anos. Situação que resolveria um problema social dos mais agudos, em relação à propriedade da terra no município de Manaus.

Tratava-se da questão das terras pertencentes assim, a Pedro Telles da Cruz e Hidelbrando Marinho. Essas terras estavam localizadas na área mais populosa do bairro de Educandos. Com o crescimento da cidade e da população, o latifúndio passou de suburbano para quase urbano. Àquela altura, o bairro já fazia assim, parte integrante da cidade. Não parecia mais um subúrbio distante. A postergação da solução da questão contribuía para a valorização natural do terreno, em decorrência da própria ocupação da área. Coube ao governador Gilberto Mestrinho liquidar a pendência.

A assinatura dos termos de venda ocorreu no Palácio Rio Negro, em 13 de outubro de 1961. O documento foi assinado pelo governador Mestrinho, Pedro Telles da Cruz e Jauary Marinho, que representava seu pai, Hidelbrando Marinho. Alguns funcionários do Palácio e o presidente da Assembleia Legislativa, deputado Joel Ferreira da Silva, testemunharam o momento. A cerimônia culminou com o repasse de um cheque de dez milhões de cruzeiros. A solução da questão social que tanto afligia milhares de pessoas permitiu que seus moradores, finalmente, pudessem dizer: agora a terra é minha.

 

RUA TAPAJÓS

No ano de 1963, a urbanização tomava conta de Manaus, havia obras públicas espalhadas por toda a cidade. Nessa onda progressista, no Centro, aterrou-se e retificou-se a Rua Leonardo Malcher. Para os moradores daquela rua, era uma benfeitoria mais que necessária; para os moradores da Rua Tapajós, os serviços realizados na vizinha transversal eram animadores, mas não resolvia o inconveniente problema do covão ao sopé do Instituto Benjamim Constant.

O trecho era inacessível aos automóveis e um suplício para os pedestres, que pra chegarem a Rua Ramos Ferreira, precisavam dar a volta por trás do Instituto de Educação. Pior era imaginar o dia em que um morador precisasse de atendimento emergencial, seriam horas de angustia e padecer. A verdade é que o tempo havia parado nos degraus da íngreme escada, testemunha estática e muda da história daquela rua. A chegada das primeiras carradas de material e os primeiros homens para iniciar as obras da Rua Tapajós, mudou essa desoladora perspectiva e até arrancou confissão de alívio: “Isto até parece um sonho”, disse um velho morador que já não mais acreditava que o progresso por lá chegasse. O inicio das obras creditou-se ao vereador Xenofonte Antony, que apelou ao prefeito Josué Cláudio de Souza, tendo esse decidido realizá-la.

Dez homens cavaram enormes valões, para que fosse erguido um muro de arrimo de dois metros de altura, o que possibilitou o aterro que permitiu o acesso de veículos automotores, no trecho compreendido entre as Ruas Ramos Ferreira e Leonardo Malcher.

Foi assim que, durante o segundo semestre de 1963, o vão que tanto atormentava os moradores da Rua Tapajós recebeu aterro, dando lugar à ladeira que – raro o morador de Manaus que ainda não experimentou – sempre causa um friozinho na barriga, quando o carro parte em velocidade, cruza a Rua Leonardo Malcher e alcança o topo da ladeira, momento em que precisa ser frenado, antes que alcance o cruzamento com a Rua Ramos Ferreira.

Inimaginável não ter essa artéria como opção de acesso ao Teatro Amazonas, a Praça São Sebastião, a Praça do Congresso e a Praça da Saudade, só para citar alguns sítios históricos do Centro de Manaus, ou mesmo como atração turística, especialmente para os mais jovens, que apreciam velocidade e emoções radicais.

 

BAIRRO PRAÇA 14

A revolução foi geral quando, em 1968, durante a gestão do prefeito Paulo Pinto Nery, se pensou trocar o nome do bairro Praça 14 para Praça Portugal. Houve repercussão na Assembleia Legislativa, protesto em forma de música e a ameaça da Escola de Samba não desfilar. Essa proposta de mudança fez desaparecer o bumbá Caprichoso, boi que representava a Praça 14 de Janeiro nas paradas juninas. Além disso, ninguém mais queria ensaiar e o samba começava a perder o conceito no seio da juventude da Praça.

O bairro já havia perdido muitas coisas. As sessões às quintas-feiras e sábados, onde se destacavam os “pais de santo” durante os rituais, desapareceram. Também se foram as bancas de tacacá e de bolo de mandioca, assim como as palmeiras que esverdeavam parte do bairro. As morenas, as batucadas e os passistas também desapareceram. Os crioulos que empinavam papagaio e eram apanhados pela polícia no Barro Vermelho também sumiram. O Barro Vermelho, com sua argila pegajosa e circos que se instalavam lá, trouxe contato social ao bairro. As agremiações Palmerinha, Eldorado e Fluminense e as noitadas carnavalescas também desapareceram.Só o bairrismo e a igreja continuavam os mesmos.

Ninguém sonhava investir em imóveis no bairro de ruas que empoçavam em dias de chuva, mas tentavam arrebatar-lhe o nome. Que coisa mais esquisita! Felizmente não vingou.

 

BAIRRO COMPENSA

No dia 20 de janeiro de 1969, mais de cinco mil pessoas, a maioria oriunda do interior do estado, invadiram impiedosamente terras situadas na Compensa. Os retirantes chegavam diariamente, queimavam o terreno, limpavam e construíam seus barracos, desconsiderando os apelos em contrário de uma senhora de nome Sebastiana, que não tinha qualquer documento que comprovasse a sua propriedade, mas que se intitulava dona da área invadida.

Os invasores aguardavam o posicionamento final do governo, mas enquanto não chegava, o ambiente continuava sendo de construção desenfreada, envolta pela fumaça branca das queimadas. Não havia luz, esgoto, nem infraestrutura. A água limpa e fresca que abastecia os novos moradores era retirada do igarapé denominado igarapé da Viúva e as necessidades fisiológicas mais urgentes eram feitas no mato. A bagunça era tamanha que, da parte dos invasores, não havia qualquer preocupação e tampouco respeito com os corredores que viriam a se tornar ruas. Havia exceções, é claro, como a já batizada Rua da Viúva, uma longa picada que dava acesso à casa da misteriosa Sebastiana, que se dizia viúva e tinha quatro filhos.

Mas a contenda estava apenas começando, pois outra viúva, a senhora Maria do Nascimento Borel, a viúva Borel, se apresentava como proprietária de uma enorme área invada. A diferença entre as viúvas Sebastiana e Maria é que, diferentemente da primeira, a segunda tinha os documentos comprobatórios de propriedade de toda a sua área invadida. Os grileiros agora se digladiavam com quem tinha legitimidade para requerer de volta o que era seu.

Cogitou-se que a então viúva Borel mantinha armados seus dez filhos. Isso teria ocorrido após serem desferidos tiros contra a sua residência, em plena quinta-feira santa daquele abril de 1969. No sábado de aleluia seus filhos revidaram, atirando contra espiões que rondavam a sua casa.

Passados quase três meses desde o início da invasão, os problemas persistiam. O então governador Danilo Areosa não adotou qualquer providência para solucioná-los. A Diretoria da Divisão de Levantamento e Cadastro da Secretaria de Produção, que não sabia a quem pertencia o imenso terreno, já havia destacado um perito. Em um mês, o perito fez assim, o levantamento geral e o esboço do mapa da área, que havia se transformado radicalmente.

Aproveitando-se disso, os grileiros devastaram a imensa área verde e poluíram os três igarapés que havia no local, pois os utilizavam para o escoamento de suas fossas.

Em maio do mesmo ano, grileiros e uma patrulha da Polícia Militar, sob o comando do então capitão Nathan Lamego, invadiram a propriedade da viúva Maria Borel. Entraram em sua casa e de lá arrancaram, à força, um de seus filhos, a pretexto de que ele andava armado de rifle. O advogado da viúva Borel, Dr. Miguel Barrela, autor da então ação de reintegração de posse impetrada na 6ª Vara Cível, agiu rápido. Ele representou, junto ao comando da corporação e à Delegacia de Ordem e Política Social, contra o então militar por invasão de domicílio. O advogado defendia que entre os invasores havia moradores dos bairros da Glória e Raiz.

Esses invasores estavam interessados apenas em se apropriar das terras para fins especulativos, já que a maioria tinha propriedades nos seus respectivos bairros. Isso foi constatado nos cartórios de registros de imóveis. Sobre a violência cometida contra o filho da sua constituinte, Dr. Barrela declarou à imprensa: “De agora em diante, a família da viúva tem ordens para atirar em quem ousar invadir sua propriedade, pois a lei assegura esse direito”.

Após a invasão de sua casa, a viúva Maria do Nascimento Borel pediu proteção às autoridades através do jornal A Crítica. O ambiente ficou ainda mais hostil entre os invasores e sua família.

Especialmente depois que um de seus filhos, ao atravessar o igarapé dentro da propriedade, precisou se defender de uma agressão por grileiros. Ele foi ferido por pauladas. Àquela altura dos acontecimentos, os grileiros já haviam ocupado cerca de 1 milhão de metros quadrados de suas terras – de um total de 1 milhão e 200 mil metros quadrados -, situadas próximo à então Usina do Bombeamento, glebas deixadas por seu falecido marido, Sr. Roberto Borel.

Enquanto as terras da Compensa continuavam sendo ocupadas diariamente, a viúva Borel exigia a imediata desocupação da área que afirmava lhe pertencer, mas com dez filhos para criar, não pode das terras cuidar, nem mesmo cerca-las, deixando-as quase que abandonadas. Isso conspirou a favor dos milhares de invasores que, somados aos moradores da antiga cidade flutuante, demarcaram áreas e lá se instalaram definitivamente, dando origem ao bairro da Compensa.

Considerando assim, o histórico de sucesso da indústria de invasão em Manaus nos últimos 40 anos, não surpreende que o apoio solicitado pela viúva Borel ao Secretário de Produção, Hugo Brandt, e ao governador Danilo Duarte de Matos Areosa, tenha sido infrutífero. No bairro Compensa, ocorreu mais um exemplo clássico do descaso do poder público. Este consentiu que a ocupação urbanística de Manaus fosse desordenada, violentando e desfigurando a cidade. Além desses crimes contra a antiga “Paris dos Trópicos”, o poder público foi condescendente com a especulação imobiliária. Isso permitiu o enriquecimento de notórios grileiros, com o auxílio luxuoso, principalmente, dos governos pós-regime militar.

Por ironia ou coincidência, o poder político “invadiu” o bairro e hoje abriga a sede do governo do estado e a Prefeitura de Manaus.

Fonte: IDD

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