A comarca do Alto Amazonas
A Constituição de 1824, outorgada por D. Pedro I após a dissolução da Assembleia Constituinte Brasílica de 1822, confirmou a inexistência do Rio Negro como província. Mesmo assim, enquanto aguardava a indicação de um presidente de província pelo imperador – que nunca chegaria a acontecer, vide a Lei Imperial de 20 de outubro de 1823 –, Rio Negro continuou sendo administrado pela junta governativa da independência.
Julgando-a sem validade legal, o ouvidor Domingos Nunes Ramos Ferreira (que estava no cargo desde 1821) desmereceu a existência daquela junta, assinalando que, se o Rio Negro não era província, tornava-se comarca do Pará, sendo ele próprio, portanto, a autoridade máxima da região.
Em janeiro de 1825, o então presidente da Província do Pará, José de Araújo Roso, tentou apaziguar a contenda, mas sem sucesso. Três meses mais tarde, diante da notícia de que a junta de governo estaria organizando um movimento revolucionário, Araújo Roso, em 30 de abril, enviou para a Barra as escunas Carolina e Camarão.
As ordens dadas a Antônio Maximiniano de Chermont Costa Cabedo – que comandava a primeira embarcação –, era prender os membros daquela junta e empossar Ramos Ferreira à frente da comarca, caso fosse confirmada a rebelião. Contudo, a hipótese da revolta foi descartada, fazendo-se desnecessária qualquer atitude mais drástica.
Uma nova tentativa de encerrar esta disputa ocorreu em julho seguinte quando José Felix Pereira de Burgos, sucessor de Araújo Roso, dissolveu a junta e ordenou que a Câmara Municipal instalada em Barcelos fosse transferida para a Barra, atribuindo a este Conselho responsabilidades governativas sobre o Rio Negro. O comando militar ficou a cargo do capitão Hilário Pedro Gurjão.
Estas medidas foram aprovadas pelo imperador por meio do aviso de 8 de outubro de 1825. Contudo, mais uma vez a disputa pelo poder dividiu o Rio Negro: de um lado ficou o ouvidor Ramos Ferreira – apoiado pelo tenente-coronel Ricardo Zany e pelo comandante Gurjão – e, do outro, a Câmara Municipal.
Em 1828, após receber relatórios do novo ouvidor da comarca, Manuel Bernardino de Souza e Figueiredo, e do tenente-coronel Zany, informando sobre a situação de penúria por que passava a nossa região, o então presidente do Pará, Paulo José da Silva Gama (Barão de Bagé), enviou correspondência ao Ministro do Império, dizendo que “O Rio Negro precisa sem dúvida de um governo separado, e um homem de gênio à testa do seu governo, de outro modo ele será sempre o que é hoje, um país miserável e quase deserto”. A Corte fluminense, porém, deu de ombros ao seu pedido.
Também em 1828, para amenizar a refrega que ainda se estabelecia na situação política da comarca, o presidente paraense mandou que a Câmara retornasse a Barcelos e que o comandante Gurjão voltasse a Belém, sendo substituído pelo coronel Joaquim Felipe dos Reis, que aqui chegou a meados daquele ano. Os moradores da Barra até tentaram conquistar a simpatia do novo comandante à causa autonomista, indo ao seu encontro para lhe prestar homenagens pela sua vinda. Porém, Felipe dos Reis recusou as lisonjas, indelicadeza que causou grande desconforto com a população e demais autoridades rionegrinas.
Com o declínio da comarca cada vez mais acentuado, as insatisfações eram iminentes. Até que em 12 de abril de 1832, na ausência do ouvidor Bernardino de Souza, as praças de 1ª e 2ª linhas irromperam um movimento de insubordinação, reclamando falta de pagamento. Encabeçada pelo soldado Joaquim Pedro da Silva, esta rebelião culminou com o assassinato do comandante Felipe dos Reis, morto a golpes de baioneta.
Na manhã seguinte, um acordo entre o juiz de paz João da Silva Cunha e o tenente Boaventura Ferreira Bentes arrefeceu os ânimos. No entanto, o levante separatista teve mais um episódio contundente quando Francisco Ricardo Zany, que assumira o governo da comarca, escapou por pouco de perder a vida em um atentado a tiros de canhão, fato que o levou a fugir para Belém. A revolta tinha como seus principais líderes o mercedário maranhense Ignácio Guilherme da Costa e os carmelitas paraenses Joaquim de Santa Luzia e José dos Santos Inocentes.
A decisão pela separação da comarca do Rio Negro da província do Pará aconteceu em uma assembleia realizada em 22 de junho de 1832, onde participaram os moradores e as forças militares. Nesta reunião, definiu-se a indicação do ouvidor Manuel Bernardino Figueiredo como presidente temporário da “Província” e a criação de um Conselho, composto por João da Silva e Cunha (presidente), Gregório da Silva Craveiro (secretário), frei José dos Santos Inocentes (procurador), tenente Boaventura Ferreira Bentes (comandante militar) e capitão Henrique João Cordeiro (secretário de Negócios Civis e Políticos).
Ao frei José dos Inocentes coube a missão especial de levar as reivindicações dos revolucionários à Corte do Rio de Janeiro. O religioso partiu rumo ao seu objetivo naquele mesmo junho de 1832, pelo rio Madeira. Enquanto isso, sob o comando do frei José de Santa Luzia, a Barra preparava suas defesas, com a artilharia vinda de Tabatinga e a instalação de dois fortins, um nas Lages e outro no sítio do Bonfim. “Na Barra, 1.000 homens e 30 canhões guarneciam o litoral” (LOUREIRO, 1978, p. 168).
O contra-ataque do presidente do Pará, Joaquim Machado de Oliveira, já estava armado desde 5 de maio, quando da indicação do tenente-coronel Domingos Simões da Cunha Baiana para acabar com o movimento. Baiana e a sua tropa de 50 homens partiram de Belém a bordo do Patagônia. Em Cametá, ganhou o reforço da embarcação canhoneira Independência, e em Santarém, da escuna Andorinha. De acordo com as instruções de Machado de Oliveira ao comandante, os meios de guerra somente seriam utilizados em caso de extrema necessidade. E não houve outro jeito:
“A flotilha bombardeou as posições rebeldes, que responderam ao fogo, quase afundando a canhoneira Independência. A 10 de agosto, houve o desembarque, e dois dias depois os rebeldes rendiam-se. A 14 do mesmo mês, o capitão Hilário Gurjão assumia, pela segunda vez, o comando militar da Comarca.” (LOUREIRO, 1978, p. 168)
A viagem de frei José dos Inocentes prosseguia e se tornava na última esperança dos insurretos da Barra. No entanto, em abril de 1833, já na Província do Mato Grosso, foi proibido de prosseguir viagem ao Rio de Janeiro. Antes, porém, que regressasse à Comarca, ele repassou os documentos que levava às mãos do revolucionário paulista Antônio Luiz Patrício da Silva Manso para que este os entregasse à Corte fluminense.
Manso conseguiria levar os papeis até à Regência, entretanto, os anseios dos insurgentes foram frustrados quando, em junho de 1833, o ministro Aureliano de Souza Coutinho condenou a rebelião rionegrina, por considerar que somente à Assembleia Geral cabia a decisão de se dar ou não autonomia àquela Comarca.
