A Revolução do Porto e as Cortes de Lisboa
Quando o então príncipe regente D. João trouxe a Corte Portuguesa para o Brasil em 1808, fugindo do bloqueio continental imposto por Napoleão Bonaparte à Europa, ele deixou seu país natal entregue à própria sorte. As tropas francesas logo ocuparam Lisboa e realizaram roubos e saques em todo o território lusitano.
E mesmo com a expulsão do exército napoleônico pelos ingleses em 1810, Portugal não se viu liberto, pois, passou a ser governado por um Conselho de Regência, encabeçado pelo marechal William Carr Beresford. Os próprios britânicos se apropriaram de bens e suprimentos que haviam sido pilhados pelos franceses. Uma situação de submissão e penúria lusa que permaneceria por mais de uma década.
No Brasil, o clima era totalmente o inverso. Ao mesmo tempo em que Portugal se via cada vez mais em declínio econômico e político, a presença da Corte Portuguesa em solo brasileiro trouxe grande desenvolvimento à sua principal colônia. É deste período, por exemplo, a criação do Banco do Brasil, da Imprensa Nacional, da Biblioteca Nacional e da primeira escola de ensino superior brasileira, implantada na Bahia — a Faculdade de Medicina —, entre outras benfeitorias.
Para corroborar ainda mais com o estado de crise lusitano, a decretação da abertura dos portos brasileiros às nações amigas, em 1808, e a assinatura do Tratado de Aliança e Comércio, em 1810, privilegiaram as relações comerciais entre o Brasil e a Inglaterra. As exportações portuguesas sofreram queda significativa. E com as finanças já arrasadas devido às altas cifras empregadas na guerra contra Napoleão Bonaparte, que gerou impostos pesadíssimos aos comerciantes, a economia portuguesa minguava e o país sofria com o desemprego e a miséria.
Mesmo assim, D. João não esboçava qualquer desejo de retornar ao seu país, pois já estava muito bem adaptado ao Brasil e não queria se desfazer das benesses conquistadas no novo reino. Com a derrota de Napoleão Bonaparte em 1814, um possível retorno de D. João a Portugal foi discutida no ano seguinte, quando o Congresso de Viena decretou que todas as monarquias destituídas pelo imperador francês deveriam ser restabelecidas.
Entretanto, para o Congresso de Viena, a situação de D. João era ilegítima, porque somente Lisboa era reconhecida como sede do governo português. Como solução à preservação dos Bragança no trono português e à sua permanência no Brasil, em 16 de dezembro de 1815, D. João assinou lei que elevou o Brasil a Reino Unido a Portugal e Algarves. Pior para Portugal, que viu sua ex-colônia se tornar igual em condição política. Ressalte-se que no ano seguinte a rainha Maria I faleceu, sendo, então, D. João coroado rei de Portugal, Brasil e Algarves, com o título de D. João VI.
Com toda esta situação de revés infligida ao povo português, era inevitável o surgimento de rebeliões naquele país. Em 1817, o general Gomes Freire de Andrade orquestrou um golpe que pretendia expulsar os ingleses de Portugal. Descoberto, porém, o levante, seus autores foram presos e alguns sentenciados à morte.
No ano seguinte, formou-se uma sociedade secreta composta por um grupo de liberais da cidade do Porto, intitulada de Sinédrio, que pretendia deflagrar nova revolta contra o domínio britânico, fato que não tardou a acontecer. Em 24 de agosto de 1820, Manuel Fernandes Tomás e José da Silva Carvalho lideraram uma insurreição militar contra o Conselho de Regência inglês, no Campo de Santo Ovídio, deflagrando um movimento antiabsolutista e constitucionalista: a Revolução do Porto.
Para governar Portugal em nome de D. João VI, os revolucionários criaram uma Junta Provisional de Governo Supremo do Reino, presidida pelo brigadeiro Antônio da Silveira Pinto da Fonseca, visconde de Canelas, e formada, além de militares, por representantes do clero, da nobreza, da magistratura, da universidade, do comércio e das províncias do Minho, da Beira e de Trás-os-Montes.
Também chamada de Revolução Vintista ou Revolta do Porto, o movimento pregava o restabelecimento da autonomia lusitana sobre o governo do país, o retorno de D. João VI a Portugal e o fim do absolutismo monárquico. Ao mesmo tempo, a burguesia mercantil lusa queria mais: que as relações comerciais entre Brasil e Portugal fossem reorganizadas, retomando-se o Pacto Colonial.
A revolta espalhou-se por várias cidades portuguesas e, em pouco tempo, alcançou Lisboa, em 15 de setembro de 1820. Na capital, porém, irrompeu uma nova revolução liberal, encabeçada por Aurélio José Morais. Composta por oficiais de segundo escalão, burgueses e populares, este movimento destituiu o comando britânico e instalou um governo interino, a Junta de Governo de Lisboa, cujo presidente era Manuel Antônio de Sampaio Melo e Castro, conde de Sampaio.
Os governos criados no Porto e em Lisboa se fundiram em um só no dia 27 de setembro, na cidade de Alcobaça, formando a definitiva Junta Provisional do Supremo Governo do Reino, de função administrativa e dirigida por José Gomes Freire de Andrade. E para a organização da eleição dos deputados constituintes, foi criada também a Junta Provisional Preparatória das Cortes.
O movimento unificado se instalou em Lisboa a 4 de outubro de 1820. Dois dias depois, a Junta Provisional Preparatória das Cortes enviou portaria às academias portuguesas solicitando orientações quanto às regras eleitorais que deveriam utilizar. A 21 de outubro, a Academia das Ciências de Lisboa enviou resposta com um modelo que sugeria 200 deputados, sendo 20 de origem do clero e 30 da nobreza. Preservava-se, assim, a reunião das Cortes com a participação dos três estados do Reino: clero, nobreza e povo.
Os oficiais da Guarnição de Lisboa, no entanto, emitiram comunicado pressionando as Juntas a adotarem o sistema eleitoral contido no modelo espanhol da Constituição de Cádis, de 1812, que pregava, essencialmente, a soberania popular, a separação dos poderes e a inviolabilidade parlamentar durante o mandato. Em 31 de outubro de 1820, a comissão eleitoral acabou por optar pelas regras contidas na Carta espanhola, mas as instruções definitivas para as eleições foram publicadas somente em 22 de novembro daquele ano, com algumas adaptações para o reino português.
Segundo essas instruções, a eleição dos deputados se daria em três graus, com a formação de assembleias eleitorais de freguesia (voto público), de comarca (voto secreto) e de província (voto público). Poderiam votar e serem votados os cidadãos com mais de 25 anos de idade, sendo que, no caso específico dos candidatos, estes deveriam ser nascidos ou, ao menos, estar residindo em sua província há sete anos.
As eleições de freguesia aconteceram no segundo domingo de dezembro, as de comarca no terceiro e as de província no quarto domingo. Indicados os eleitores de freguesia, estes se reuniram na “cabeça” de cada comarca para a eleição dos eleitores de comarca, cuja quantidade deveria ser três vezes maior que o número de deputados a serem eleitos.
O próximo e último passo foi a realização das assembleias eleitorais nas “cabeças” das províncias portuguesas de Algarves, Alentejo, Extremadura, Beira, Minho e Trás-os-Montes. A partir de trinta mil almas, as províncias tinham direito a escolher um deputado às Cortes. Caso houvesse um excedente de, ao menos, mais quinze mil, poderiam fazer outro representante.
Após o pleito dos titulares, escolhiam-se os deputados substitutos, em quantidade correspondente a um terço do número de proprietários. Mesmo nos casos em que a província indicasse apenas um ou dois deputados, tinha direito a um parlamentar reserva. Ainda de acordo com as regras eleitorais, cada deputado receberia, por dia, como ajuda de custo, o valor de 4.800 réis, contados a partir da data de sua viagem para a capital portuguesa, tudo bancado pelo erário.
As instruções eleitorais indicavam que os deputados portugueses eleitos deveriam se reunir em Lisboa a 6 de janeiro de 1821. Porém, somente no dia 24 que aconteceu a primeira sessão preparatória para a validação dos diplomas dos deputados. E dois dias depois ocorreu a instalação oficial das Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa — na Sala da Livraria, do Palácio Real, antigo Convento das Necessidades –, com 74 eleitos e sem a presença de representantes brasileiros.
Para substituir a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, no final de janeiro as Cortes organizaram uma Regência composta pelo marquês de Castelo Melhor, pelo conde de Sampaio, frei Francisco de São Luís, José da Silva Carvalho e por João da Cunha Soto Maior. No mês seguinte, em sessão realizada no dia 9 de fevereiro, foram apresentadas as bases da primeira Constituição lusa, com 34 artigos. Três dias mais tarde foram iniciadas as discussões do projeto constitucional.
No Brasil, em 26 de fevereiro, D. João foi obrigado, por um motim militar, a jurar a Constituição portuguesa que ainda estava sendo debatida em Lisboa. No mês seguinte, em 7 de março, o rei sanciona dois decretos, um deles que ia de encontro a um dos anseios dos revoltosos do Porto:
“Tendo-se dignado a Divina Providência de conceder após uma tão devastadora guerra o suspirado benefício da paz geral entre todos os Estados da Europa; e de permitir que se começassem a lançar as bases da felicidade da Monarquia Portuguesa, mediante o ajuntamento das Cortes Gerais, extraordinariamente congregadas na Minha muito nobre e leal Cidade de Lisboa, para darem a todo o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves uma Constituição Política conforme os princípios liberais, que pelo incremento das luzes se acham geralmente recebidos por todas as Nações: (…) Cumpria pois que cedendo ao dever, que Me impôs a Providência, de tudo sacrificar pela felicidade da Nação, Eu Resolvesse, como tenho resolvido, transferir de novo a Minha Corte para a cidade de Lisboa, antiga Sede e berço original da Monarquia; a fim de ali cooperar com os Deputados Procuradores dos Povos na gloriosa empresa de restituir à briosa Nação Portuguesa aquele alto grau de esplendor, com que tanto se assinalou nos antigos tempos: E deixando nesta Corte ao Meu muito amado e prezado filho, o Príncipe Real do Reino Unido, Encarregado do Governo Provisório deste Reino do Brasil, enquanto nele se não achar estabelecida a Constituição Geral da Nação.”
O outro decreto versava sobre a convocação imediata de eleições no Brasil e nas demais colônias ultramarinas portuguesas, visando à representatividade destes nas Cortes de Lisboa:
“Hei por bem ordenar que neste Reino do Brasil e Domínios Ultramarinos se proceda desde logo à nomeação dos respectivos Deputados, na forma das Instruções, que para o mesmo efeito foram adotadas no Reino de Portugal, e que com este Decreto baixam (…); e aos Governadores e Capitães Generais das diferentes Capitanias, se expedirão as necessárias ordens, para fazerem efetiva a partida dos ditos Deputados à custa da Minha Real Fazenda.”
Após o período de deliberações, em 10 de março de 1821 as Cortes Gerais fizeram publicar em Lisboa o decreto com as bases da Constituição lusa. Treze dias depois, por meio da Decisão de Governo n. 13, o ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino, Ignácio da Costa Quintella, comunicava oficialmente a partida de D. João para Portugal e a imediata convocação das eleições dos representantes brasileiros para as Cortes em Lisboa.
De acordo com SILVA NETO (2003), foram eleitos representantes de todas as províncias existentes no Império do Brasil àquela época, num total de 97 deputados, sendo 72 titulares e 25 substitutos. No entanto, somente 53 deputados compareceram, de fato, às Cortes portuguesas…
“(…) sendo 10 (dez) representantes de Pernambuco; oito (8), da Bahia; seis (6), do Rio de Janeiro; seis (6), de São Paulo; quatro (4), do Ceará; três (3), de Alagoas; três (3), da Paraíba do Norte; três (3), do Grão-Pará; dois (2), do Maranhão; dois (2), do Rio Negro (Amazonas); dois (2), do Piauí; um (1), do Rio Grande do Norte; um (1), de Santa Catarina; um (1), do Espírito Santo; e um (1), de Goiás.
O interessante é que, mesmo sem ter sido legalmente eleito como deputado, Felipe Patroni foi o primeiro americano a falar às Cortes portuguesas, discurso ocorrido em 5 de abril de 1821 e que defendia a adesão do reino brasileiro ao projeto constitucional luso. A primazia ao delegado paraense foi deferida em razão de a província do Grão-Pará ter sido a primeira do Brasil a ser solidária aos ideais liberais e antiabsolutistas de Lisboa.
Naquele mesmo mês, a 26, a Corte Joanina partiu para Portugal, deixando o Brasil sob a regência do príncipe D. Pedro de Alcântara. O desembarque do rei D. João – e seus quase quatro mil súditos – em terras lusitanas aconteceu em 4 de julho de 1821. Neste mesmo dia, ele nomeou o primeiro ministério constitucional português, composto por Antônio Pedro Quintela (Reino), Francisco Duarte Coelho (Fazenda), Antônio Teixeira Rebelo (Guerra), Joaquim José Monteiro Torres (Marinha) e o conde de Barbacena, D. Francisco (Estrangeiros).
De forma lenta e tardia, os representantes brasileiros iam chegando a Lisboa para tomarem assento em seus lugares no Palácio Real, processo que se estendeu de agosto de 1821 (sete meses após o início dos trabalhos parlamentares) a abril de 1822. Na medida em que os parlamentares brasileiros participavam das sessões e tomavam conhecimento do projeto de recolonização contido na Constituição, mais difícil ficava a possibilidade de os dois reinos se integrarem.
Os trabalhos de discussão da primeira Constituição portuguesa encerraram-se em 14 de setembro de 1822 e a sua assinatura pelos constituintes deu-se nove dias mais tarde. A cerimônia de juramento aconteceu, respectivamente, em 30 de setembro pelos deputados e em 1º de outubro pelo rei. A última sessão das Cortes Extraordinárias da Nação Portuguesa foi realizada no dia 4 de novembro de 1822, tornando Portugal uma monarquia constitucional.